A telecirurgia, uma evolução tecnológica dentro da telemedicina, já transforma a prática médica ao permitir a realização de procedimentos cirúrgicos remotamente. Essa técnica, que se apoia em robótica avançada, inteligência artificial e conectividade de altíssima qualidade, oferece benefícios significativos, como o acesso a especialistas em áreas remotas e maior precisão em procedimentos, em verdadeira democratização da Saúde. No entanto, ao mesmo tempo que apresenta oportunidades, a telecirurgia traz desafios, especialmente no campo jurídico, ético e técnico.
No Brasil, a Constituição Federal de 1988 assegura o direito à saúde como dever do Estado e direito de todos. A telecirurgia pode ser vista como um meio de efetivar esse direito ao levar tratamentos de alta complexidade a regiões antes inacessíveis. Porém, a tecnologia precisa ser analisada sob a ótica de outros direitos constitucionais, como a privacidade e a dignidade da pessoa humana. Assim, surgem questões como a proteção de dados, a relação contratual entre médico e paciente, e a definição de responsabilidades em caso de falhas.
A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) desempenha um papel crucial nesse cenário, uma vez que a telecirurgia depende do tratamento de dados sensíveis, incluindo informações de saúde. A legislação exige que esses dados sejam protegidos com medidas técnicas e administrativas rigorosas. Isso inclui a necessidade de consentimento explícito do paciente e o uso de tecnologias robustas, como criptografia e sistemas de autenticação avançados, para evitar vazamentos. A LGPD estabelece que o descumprimento dessas obrigações pode resultar em sanções, desde multas até a suspensão do tratamento de dados, o que torna o compliance essencial para hospitais e fornecedores de tecnologia.
Outro ponto sensível na telecirurgia é o consentimento informado. Esse documento, que é uma prática recomendável em qualquer intervenção médica, precisa ser revisado e adaptado para contemplar, além dos benefícios, os riscos específicos da prática remota. Entre os riscos esperados, além de outros, estão falhas tecnológicas, atrasos de conexão, ataques hacker e limitações na comunicação entre o médico e a equipe local. De acordo com o Código Civil, a relação médico-paciente é baseada nos princípios da boa-fé e da transparência, sendo indispensável que o paciente ou o seu representante legal compreenda plenamente as limitações e os riscos do procedimento e dê o seu aceite.
Além disso, o Código de Defesa do Consumidor (CDC) também oferece parâmetros para avaliar a responsabilidade em casos de telecirurgias. A legislação considera o paciente como destinatário final dos serviços médicos, o que pode implicar no reconhecimento da responsabilidade objetiva dos fornecedores por eventuais falhas tecnológicas. Em situações em que há danos causados por falhas no equipamento ou interrupção da conexão, a lei prevê a solidariedade entre as empresas de telecomunicação, médicos, hospitais, empresa fornecedora dos equipamentos, dentre outros envolvidos na cadeia de consumo, o que reforça a necessidade de contratos bem elaborados e de infraestrutura tecnológica confiável.
Casos reais e hipotéticos ajudam a ilustrar essas questões. Em um cenário em que uma falha de conexão interrompe um procedimento, o paciente pode sofrer danos irreparáveis. Nesse contexto, caberia ao hospital e ao fornecedor de tecnologia demonstrar que tomaram todas as precauções possíveis para evitar a falha. Por outro lado, casos bem-sucedidos, como o uso da telecirurgia para atender pacientes em regiões isoladas com suporte de redes 5G, mostram o potencial transformador dessa tecnologia quando bem gerida.
A ética médica também desempenha um papel fundamental na implementação da telecirurgia. O Código de Ética Médica estabelece que os médicos devem buscar capacitação contínua para evitar riscos desnecessários aos pacientes. A introdução de robôs cirúrgicos e sistemas avançados exige treinamento especializado e certificação, tanto para médicos quanto para equipes de suporte técnico. Sem essa preparação, há riscos significativos de erro humano ou mau uso da tecnologia, o que pode resultar em processos administrativos para apuração de violação ao Código de Ética Médica e resoluções do CRM e CFM.
Para que a telecirurgia prospere no Brasil, seria recomendável que o Conselho Federal de Medicina (CFM) estabelecesse normativas claras e específicas para a prática, além daquela existente. Isso inclui não apenas diretrizes técnicas, mas também regras éticas e jurídicas que ajudem a mitigar os riscos associados. Além disso, hospitais e clínicas que adotam essa tecnologia devem implementar programas de compliance que contemplem a segurança de dados, a qualificação profissional e o uso responsável da tecnologia, uso do termo de consentimento informado e esclarecido próprio, sistema de redundância para evitar falhas e ataques cibernéticos.
Em conclusão, a telecirurgia representa uma oportunidade sem precedentes para expandir o acesso à saúde e melhorar os resultados médicos. No entanto, sua implementação exige uma abordagem cuidadosa que equilibre inovação tecnológica com segurança jurídica e ética. Ao alinhar essas dimensões, o Brasil pode aproveitar os benefícios da telecirurgia, garantindo que ela seja uma ferramenta segura, eficiente e alinhada aos direitos dos pacientes.
Mariana Guilardi Grandesso dos Santos
Sócia – Scartezzini Advogados Associados
mariana.guilardi@scartezzini.com.br
Publicado 04/12/24 por Daniel Barani.
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